quinta-feira, abril 21, 2005

everything looks normal from here...

Update: algumas pessoas perguntaram. Sim, minha mãe foi assaltada como diz aí embaixo.

Almocei com ela naquele dia. Era uma terça. Não me lembro como estava o frio, sobre o que conversamos (se é que trocamos muitas frases conjugadas). Não me lembro de detalhes do almoço, nem nada. O eterno beijo de despedida e um tchau, te vejo de noite, como sempre escutava. Nos dividimos ali. Eu fui pro meu serviço, e ela pro dela. Fazemos trabalhos meio burocráticos, mesmo que lidando com situações humanas. Ela, auxiliar contábil, entra em contato todos os dias com os problemas financeiros dos outros para resolver os problemas financeiros da empresa que causa um problema financeiro na conta dela no final do mês. Eu, estudante de jornalismo, fico na frente do computador procurando acontecimentos relacionados com a empresa que troca este meu tempo pelas minhas contas pagas no final do mês.
É engraçado que se pensa em outras coisas enquanto se trabalha, se pensa em planos, em contas, em sonhos e em pessoas também. Pensa-se nas pessoas que se ama e nas coisas boas para dar um descanso. Descanso na vista, que assim olha o longe mais distante e esquece do horizonte que se forma na parede da sala de janela pequena. Descanso na mente que se espreme na tela poucas polegadas de um computador velho de uma estatal sucateada. Passamos, assim, tardes inteiras desperdiçadas em teclas rápidas, luzes brancas nos olhos e telefonemas com problemas e soluções.
Mas, naquela terça, nossas rotinas foram diferentes. Eu tinha um desses shows de rockandroll que pulam camisetas pretas e franjas estranhas enquanto latas de cerveja quente são erguidas para se acalmar o calor que contamina os corpos que não param de dançar sonhos de rockstars do velho continente. Boa banda trazida da Grã-Bretanha para cansar as pernas e alegrar os ânimos de tantos que gostam de guitarras e barulhos estranhos que se fecham num misto de atitude e música.
Ela pegou o ônibus de fim de expedientes: lotado, homens suados, crianças sentadas e muitos idosos de pé e apertados na frente. Desceu no ponto e escolheu caminhar os 20 minutos que ainda a separavam pra casa para economizar o pouco dinheiro que ainda sobrava do salário que dizem ter depositado no final do mês passado. O exercício também é bom pro corpo, ao menos é o que dizem doutores e especialistas, assim, preteriu mais um ônibus lotado.
Muitas vezes, pegávamos juntos o ônibus e descíamos onde ela desceu e conversávamos o dia no caminho de volta pra casa. Muitos eram os momentos de silêncio sob os sons dos passos cadenciados desviando de buracos no cimento gasto das quadras grandes. Há muitos anos, quando eu ainda não tinha barba na cara e a altura não deveria chegar a no que hoje entendo como linha da cintura, corria pelas mesmas quadras sob o olhar calmo da mãe contente com o filho que crescia a olhos vistos. Nesse tempo, as quadras tinham menos casas e as ruas eram mais tranqüilas. Policiais não eram necessários para se sentir seguro. Mesmo no escuro, amigos sentavam-se sob a lua e contavam causos e rasgavam o frio da garganta com o quente do amargo chimarrão. As casas sem grades e os edifícios simples e sem sacadas mal tinham cercas nas garagens.
Hoje, no entanto, ando olhando cantos quando o sol ainda ilumina, e desviando das sombras que os postes traçam com luzes e que a lua, mesmo sem nuvens para atrapalhar, não consegue enxergar. Tanto tenho razão em andar assim que os tiroteios ocorridos nas madrugadas apenas reforçam as buscas do olho por razões em que se preocupar. Ela também sabe que a época é outra, escuto conselhos e cuidados toda vez que saio de casa. Por isso, também anda apreensiva pelas ruas e cuida sozinha as esquinas que passa.
Mas, mesmo com os olhos procurando pontos de preocupação, às vezes não se vê ruídos chegando mais perto. Mesmo com os ouvidos ao alto, não se vê saltarem do limbo destinos errados e anjos tortos sem asas. Então, ela caminhava rua acima e, do nada, ouviu uma corrida surgir de algum lugar escondido. Sentiu um puxão na bolsa e (acredito, pois me disse ao vivo) pensou no filho a alcançando. Olhou com um sorriso para acabar com a brincadeira, mas não viu a barba e o cabelo desfeito pelo vento, sequer os olhos cansados de mais um dia de trabalho. Viu olhos perdidos num frio da falta de alguma coisa. Sentiu, nos braços, a força dos outros braços famintos por algo alheio.
Percebeu que não era eu brincando e rindo por estar chegando em casa, mas era outro tomando o pouco que não fugiu ao dia-a-dia de sustentar família. Gritou. Não adianta. Como não adianta também tentar segurar com braços de trabalho o que os braços de assalto tenta (e conseguem) levar. Não adianta por que apenas curiosos olham, mas ninguém consegue – por que sabe das conseqüências – se libertar de seus medos e ajudar a quem precisa. E, depois de ter nas mãos o que até então minha mãe tinha certeza de pertencer a ela, voltou correndo pelos buracos, bueiros, sombras e problemas de onde ele surgiu.
Ela correu atrás do rapaz desconhecido, mas não foi capaz de alcançar os anos sem exercício físico maior que criar dois filhos (o que deve, na verdade, cansar ainda mais). Voltou pra casa, que era o único objetivo vivo no seu corpo desde o início da noite. Ligações pra polícia e uma pro celular que foi atendido pelo seu hospedeiro. “Dei um UM-CINCO-SETE e me dei mal. Precisava de cem reais prum bagulho, mas não tem nenhum pila aqui.” Ele disse um lugar onde ia largar a bolsa vazia com os livros emprestados e o óculos, as únicas coisas que estavam na bolsa velha couro sintético marrom. Enquanto a filha ligava cancelando a conta do celular, a polícia acompanhava o marido e a esposa ao local, não acharam nada, a não ser os olhos vigiantes do outro lado da praça que cuidavam os passos da mulher recém-assaltada.
No nada que acharam, perceberam o vazio da impotência. Falando em prejuízos materiais: três livros, identidade, agenda telefônica e as chaves do apartamento. Como não consigo mensurar os prejuízos morais, não me atrevo a tecer comentários. Minha mãe roubada enquanto eu apenas lamentava uma banda de qualidade discutível ter ganhado de bandas melhores um concurso de bandas independentes.
Mesmo assim, penso aqui comigo nessa noite discutível: “mesmo sabendo das armadilhas do destino, que posso eu fazer para acalmar o ritmo sem lógica dessas coisas que não respeitam relógio nem sentidos”. Sim, sempre fui atento, olhando lados e desviando de cantos que escondem problemas, mas isso basta? E se não basta? De que adianta tudo isso, se esse medo vira bloqueio e não deixa as coisas acontecerem – tanto as ruins quanto as boas, que são as razões para a vida acontecer?
E, quando nem mesmo o chacoalhar das chaves na parte interna das fechaduras da nossa casa nos faz sentir mais seguros, o que fazer?
Não sei, não sei...
Não sei se devo continuar chateado pela qualidade não ter sido contada no concurso, ou se devo lamentar o meu pequeno mundo ter sido invadido por um desconhecido ou se devo pensar que todos os pequenos mundos do mundo estão sendo invadidos e esses desconhecidos muitas vezes não tem mundos, mas ruínas para carregar...


Não reli, como me falaram que deveria. Me avisaram dos erros de concordância. Mas decidi que foda-se, desabafos não atendem a gramática. Foda-se o senso comum e o bom senso. Se ninguém é perfeito, tampouco eu preciso ser.

.por rodrigo, keep distance.